Autor: Frederico Horie Silva // fredericohorie@yahoo.com.br
Lá estava o menino Ronaldo, lendo um livro na varanda de sua casa, não por ocasião de uma prova ou para impressionar alguém. Estava lendo porque queria, porque podia. Este ato, tão singelo, representa muito em um país com cerca de 14 milhões de analfabetos. Ler e escrever são práticas sociais fundamentais para o exercício da cidadania que, durante muito tempo, estiveram inacessíveis a Ronaldo.
Há poucos anos atrás, Ronaldo vivia em condições precárias em uma comunidade de catadores de lixo. Alimentava-se pouco e mal, apresentava higiene pessoal deplorável e as influências humanas com as quais convivia traziam poucas perspectivas de mudança. Suas pernas eram tortas como a do Garrincha, mas não por uma questão genética, e sim devido a incontáveis bichos-de-pé que, provavelmente, se alimentavam melhor do que ele.
Ronaldo não sabia ler nem escrever. Nunca havia freqüentado uma escola. Porém, após ter a oportunidade de aprendizado, aprendeu não somente a lercomo a incluir a leitura nas suas atividades de lazer. O jovem encontrou pessoas sensíveis que o inseriram em diversas atividades educativas, esportivas, culturais e, o mais importante, que o levaram para a escola. Atualmente, seu apelido é Cérebro e, assim como o órgão central do nosso sistema nervoso, Ronaldo possui uma plasticidade incrível para se adaptar às condições do meio.
Ronaldo é um menino comum, que precisou de pessoas que acreditassem em suas potencialidades, que o respeitassem e o acolhessem sem ser demasiadamente assistencialistas. Todos tem a capacidade e o direito de aprender, a seu modo e a seu tempo, seja rico ou pobre, homem ou mulher.
Ronaldo nunca foi uma criança de fácil convívio, e hoje também não é um adolescente fácil. Muitas vezes demonstrou comportamento agressivo e displicente. Chegou a ser, inclusive, convidado a mudar de escola devido ao excesso de problemas disciplinares. Isto, contudo, não significa que ele não queria aprender, que não "nasceu para o estudo" ou que não davavalor ao que lhe era oferecido - bobagens que escutamos com freqüência nos corredores escolares. Ronaldo é imaturo, como toda criança, e apresenta problemas, como todos nós. Atribuir aos alunos a culpa pelo fracasso escolar é fechar os olhos para nossa responsabilidade enquanto nação.
Apesar de todos os problemas, Ronaldo se esforçou para freqüentar a escola. Passou anos como aluno ouvinte, pois não possuía a documentação necessária para regularizar sua situação na escola. Hoje, com 15 anos, foi aprovado em um exame que o permitiu avançar do 5º para o 6º ano. Às sextas-feiras, trabalha para ajudar a família que o acolheu.
De sua história, ainda em construção, gostaria de ressaltar alguns pontos fundamentais. Primeiramente, ele não conseguiu nada sozinho. Por trás do seu esforço pessoal está um grupo de pessoas que acreditou, ofereceu oportunidades e que também exigiu comprometimento por parte do menino, o que não poderia ser diferente uma vez que crianças não sabem por si só a importância da leitura, de escovar os dentes ou de aprender determinados conteúdos acadêmicos. É função da sociedade adulta, incluindo família, escola, poder público e comunidade, estimular, valorizar e oferecer oportunidades diversas.
Dentre as oportunidades oferecidas a Ronaldo, ressalto a importância de sua inserção na escola formal. A escola tem papel fundamental na luta por uma sociedade menos desigual, assumindo parte da responsabilidade em oferecer condições adequadas para que crianças e jovens tenham acesso, se apoderem e façam uso do conhecimento elaborado.
A garantia do acesso à educação pública é um ponto fundamental, porém não garante a permanência e o aprendizado dos alunos nas salas de aula, pois muitas variáveis, inclusive externas à escola, influenciam o aprendizado. Entretanto a escola, em parceria com o poder público, tem o dever de proporcionar um menor número de alunos por sala de aula, livros de qualidade e em quantidade adequada, salas climatizadas e professores qualificados, dentre outras condições. O fato de quea educação é historicamente desvalorizada no Brasil pode levar o leitor a concluir que tais condições são utópicas, embora não sejam. A educação de qualidade é uma esfera extremamente básica e requer investimento prioritário por parte do poder público e da sociedade em geral.
Para ler um livro é necessário ter sido alfabetizado, mas também é preciso silêncio, concentração e motivação. Ronaldo conseguiu e hoje experimenta a liberdade e a autonomia proporcionadas pela leitura. Se almejamos que uma quantidade ainda maior de alunos tenha acesso à cultura letrada, não podemos negar a importância da escola neste desafio.
* Texto originalmente publicado no Jornal Diário de Natal, dia 22/07/2011, por Frederico Horie Silva, Educador e Biólogo, que escreveu a convite do Instituto de Desenvolvimento da Educação (IDE).
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